A recente inversão no cenário das finanças do Rio Grande do Sul, que acumulava boas notícias e passou a emitir sinais de preocupação, pode ser explicada em parte pela maior queda de receita corrente verificada entre todos os Estados brasileiros no ano passado.
Uma análise comparativa mostra que os cofres gaúchos sofreram uma perda de 8,2% nos recursos em 2022 na comparação com o ano anterior — pior desempenho nacional levando-se em consideração as receitas de caráter permanente, ou seja, excluídos empréstimos e venda de bens. A deterioração das contas foi agravada pela combinação entre a redução de alíquotas de ICMS, declínio nas transferências federais e sucessivas secas que abalaram o agronegócio.
Nos últimos anos, após longos períodos de déficits e crises financeiras que levaram a atrasos no pagamento do funcionalismo, os gaúchos haviam passado a perceber sinais de alívio. Vencimentos foram colocados em dia, e houve fôlego para anunciar investimentos acima de R$ 6 bilhões no primeiro ano do chamado programa Avançar.
Recentemente, o tom dos anúncios oficiais mudou. O Piratini informou que não seria possível fazer a revisão geral de salários dos servidores neste ano, recorreu a recursos cedidos por outros poderes e, um ano após concluir a adesão ao regime de recuperação fiscal (RRF), informou que a partir de 2028 não conseguirá manter em dia os pagamentos da dívida com a União se não forem novamente renegociados.
O economista e especialistas em finanças públicas Darcy Francisco Carvalho dos Santos é autor do levantamento que aponta o Rio Grande do Sul como campeão na perda de receitas correntes no país, atrás de Alagoas e do Distrito Federal (únicas três regiões com variação negativa). O especialista sustenta que o aperto no cinto é provocado por uma conjunção de fatores negativos. Alguns dos itens que comprometeram o Tesouro tiveram impacto nacional, como o corte nas alíquotas do ICMS de 25%para 17% ainda durante a gestão de Jair Bolsonaro. Mas os gaúchos enfrentaram peculiaridades que corroeram ainda mais a arrecadação.
— Outros Estados tiveram aumento nas transferências correntes (recursos que vêm da União), como Minas Gerais, ou de recursos especiais, como os royalties do petróleo, no caso do Rio de Janeiro. O Rio Grande do Sul não contou com nenhum tipo de compensação — analisa Santos.
Dificuldades reabrem debate sobre dívida com a União
A situação ficou ainda mais comprometida pela permanente vulnerabilidade às variações climáticas. No ano passado, a seca afetou 45% da produção agropecuária – setor fundamental para a economia gaúcha, cujo PIB despencou 5,1%. Na avaliação de Santos, o baque acabou antecipando e piorando as dificuldades para honrar os pagamentos da dívida superior a R$ 93 bilhões com a União.
— O Estado assumiu um compromisso de pagar parcelas muito elevadas, até pelo tempo em que ficou sem fazer os pagamentos. Mas, se não houvesse esse acúmulo de fatores que resultou em uma grande perda de receita, os problemas envolvendo o regime de recuperação fiscal não apareceriam tão cedo — afirma o economista.
A volta das preocupações financeiras motiva críticas por parte da oposição.
— A fantasia de que o Estado estava ajustado, anunciada durante a campanha, acabou, e a conta é duríssima. O regime de recuperação (fiscal) é insustentável, e o governo não tem um plano de desenvolvimento econômico — afirma o deputado do PT Miguel Rossetto, integrante da Comissão de Finanças da Assembleia.
O Estado ainda registrou um superávit orçamentário de R$ 3,3 bilhões no ano passado, em parte graças a receitas extraordinárias, a reduções de custos e ao pagamento parcial do débito com o governo federal. Mas, quando se analisa o resultado primário, que desconsidera recursos extraordinários ou gastos com a dívida e é considerado um indicador mais adequado para a análise de contas públicas, a cifra cai para R$ 1,3 bilhão — bem abaixo dos R$ 4,6 bilhões verificados em 2021.
A secretária estadual da Fazenda, Pricilla Santana, sustenta que o Estado sofreu prejuízos imprevistos em razão dos cortes nas alíquotas de ICMS e das sucessivas secas, e que o RRF já previa revisões periódicas a fim de se ajustar a eventuais oscilações econômicas.
— Na própria lei (do regime de recuperação) há momentos de revisão porque a economia é dinâmica, e isso precisa ser incorporado às métricas que levam à consolidação fiscal, como despesas de pessoal e resultado primário. Das ferramentas para a discussão federativa, o regime de recuperação fiscal é o que há de melhor para o Rio Grande do Sul ou qualquer outra unidade da federação. Graças a ele, fizemos reformas estruturais como a da Previdência e a administrativa — afirma a secretária.
O governo pretende pedir mais prazo para quitar o débito à União e uma troca no índice de indexação, que hoje considera a inflação mais 4%, ou a taxa Selic (o que for mais baixo).
Mas o professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rober Iturriet Ávila entende que um novo indexador traria de fato alívio aos cofres se fosse aplicado retroativamente desde 1998.
— Entre 1998 e 2013, a dívida foi indexada por um índice que era muito influenciado pela taxa de câmbio, o que elevou muito o valor. O ideal é que isso fosse revisto retroativamente — sustenta Ávila.
Mudança no ICMS e seca aprofundaram perdas
A redução nas alíquotas de ICMS determinada no último ano do governo de Jair Bolsonaro, que fixou o percentual cobrado em todo o país em 17%, provocou impacto em todo o país, mas nenhum Estado sofreu perdas tão grandes de receita corrente (excluídos empréstimos ou alienação de bens, parâmetro mais indicado para avaliar as finanças públicas) quanto os gaúchos.
Uma das explicações para o mau desempenho é a combinação entre a sangria do ICMS com os prejuízos impostos pela estiagem que, pelo terceiro ano seguido, compromete a produção agropecuária e, de forma indireta, prejudica a economia como um todo.
No caso do ICMS, os gaúchos ainda contavam até janeiro do ano passado com 30% de tarifa sobre combustíveis, energia e telecomunicações, patamar superior ao de outras regiões do Brasil que foi reduzido para 25% e, posteriormente, 17%. Segundo a Secretaria Estadual da Fazenda, as alterações legais envolvendo o imposto, que também deixou temporariamente de cobrar taxas por distribuição e transmissão de energia (recentemente retomadas), provocaram uma queda superior a R$ 5 bilhões. De acordo com a responsável pela pasta, Pricilla Santana, até o momento o Estado não contou com ressarcimentos da União relativos a esse prejuízo ao Tesouro:
— Houve atraso no processo de compensação já autorizado por lei complementar.
O levantamento realizado pelo economista Darcy Francisco Carvalho dos Santos mostra que, apesar das mudanças nacionais no ICMS, apenas Rio Grande do Sul, Alagoas e o Distrito Federal tiveram perda de receita corrente em relação a 2021. O valor atribuído aos gaúchos, com base em registros do Tesouro Nacional, caiu de R$ 58,9 bilhões para R$ 54 bilhões entre 2021 e o ano passado.
Arrecadação tributária caiu 12%
As receitas tributárias – principal rubrica de arrecadação que depende da gestão de cada governo (diferentemente das transferências vindas da União, vinculadas a dispositivos legais) — também ilustram as recentes dificuldades enfrentadas pelas finanças do Estado. De acordo com os dados do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), a arrecadação de impostos, taxas e contribuições aumentou em 11 Estados do país no ano passado, e recuou em outros 16. O Rio Grande do Sul sofreu a quarta pior queda no país, com uma diminuição de 12,3% em relação a 2021. Isso é reflexo, também de dificuldades econômicas agravadas pela estiagem.
Também sob regime de recuperação fiscal, Minas Gerais apresentou o maior declínio na arrecadação tributária, com variação de -28%. Mas pelo menos uma parte dessa perda foi compensada pela elevação nas transferências correntes da União – que incluem repasses determinados por lei como o Fundo de Participação dos Estados (FPE). No caso dos mineiros, houve crescimento real de 12,7% desse tipo de repasse no ano passado, enquanto os gaúchos tiveram nova queda — de 4%.
Mudança em regra de repasses prejudica o RS
Um dos pontos-chave para entender a diminuição de repasses da União para o Rio Grande do Sul nos últimos anos, as chamadas transferências correntes, está em uma mudança legal ocorrida em 2013 envolvendo o Fundo de Participação dos Estados (FPE).
A alteração fez com que a fatia dos recursos que cabem aos gaúchos caísse de 2,35%, em 2015, a partir de quando a alteração passou a ter efeito, para pouco mais de 1% nos últimos anos (embora o Rio Grande do Sul contribua com mais de 4% dos impostos que constituem o fundo).
Segundo a secretária estadual da Fazenda, Pricilla Santana, a modificação passou a considerar a renda per capita de cada unidade da federação como um dos fatores para distribuir os recursos: quanto maior esse indicador, pelo qual os gaúchos ficam entre os primeiros do país, menor é o repasse.
O tamanho da população, cujo crescimento foi de apenas 0,14% ao ano entre os dois últimos censos no Rio Grande do Sul, é outro elemento considerado. Nesse caso, populações maiores contam com uma fatia mais robusta. Pricilla afirma que recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a adoção de uma nova fórmula até 2025.
— Enquanto a nova lei não for publicada, segue valendo a regra atual. Mas, certamente, temos uma janela para redefinir o quinhão do Rio Grande do Sul — afirma a secretária.
Piratini vê cenário mais favorável em 2023
Professor de Economia da UFRGS, Rober Iturriet Ávila avalia que o principal fator negativo envolvendo o Tesouro gaúcho foi o corte abrupto nas alíquotas de ICMS envolvendo energia, comunicações e combustíveis.
— Essa foi a principal questão envolvendo as finanças, já que, historicamente, o Rio Grande do Sul recebe uma fatia menor das transferências da União — acredita Ávila.
Em relação ao imposto, um novo modelo substituiu a taxa de 17% por um valor fixo cobrado por litro no caso dos combustíveis, por exemplo. Também foi retomada a cobrança por transmissão e distribuição de energia. Ainda não há uma avaliação de como vai ficar o retorno financeiro da mudança na fórmula do ICMS pelo fato de a alteração ainda ser muito recente, mas a secretária estadual da Fazenda, Pricilla Santana, já percebe uma melhora progressiva nas receitas.
— Mês a mês, observamos um crescimento na arrecadação do ICMS. Esperamos que o segundo semestre seja muito mais favorável do que o primeiro deste ano ou do que o segundo do ano passado. Não podemos deixar de nos preocupar, mas a perspectiva é boa — afirma Pricilla.
Apenas em relação ao retorno das cobranças sobre distribuição e transmissão de energia, que havia sido suspensa, a expectativa é de R$ 1 bilhão a mais ao ano.
(FOTO: ARQUIVO RÁDIO MEGA)